Africa Monitor

Acesso Livre

Leston Bandeira

A Odebrecht colonizou o poder do país que sonhava ser "o segundo Brasil"

A Odebrecht colonizou o poder do país que sonhava ser "o segundo Brasil"


O Brasil foi o primeiro país a reconhecer a declaração de Independência feita por Agostinho Neto a 11 de novembro de 1975. Em Luanda e desde logo se verificou uma particular apetência dos brasileiros para, no mínimo, substituírem os portugueses no terreno.

Com altos e baixos, as relações os dois países foram progredindo. Já em 1983, os pequenos projectos foram substituídos pela grande Odebrecht, que convenceu a ditadura brasileira a financiar, a troco de petróleo, a construção da barragem de Capanda, com o intuito de substituir o projecto de ampliação da de Cambambe, uma obra ainda realizada pelos portugueses no tempo colonial.

A partir deste momento, as relações entre a Odebrecht e o Estado angolano, nomeadamente com o presidente José Eduardo dos Santos, sua família e os generais, não cessou de crescer, quer em quantidade de dinheiro investido, quer em afinidades pessoais de amizade e cumplicidade. Esta relação é agora focada num trabalho de investigação da agência jornalística brasileira Pública.

No artigo, a investigadora Anna Saggioro, do Laboratório Interdisciplinar de Estudos em Relações Internacionais (Lieri), da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro, afirma que é impossível, actualmente, dissociar o poder do presidente com o poder da Odebrecht.

“A gente não pode descolar a Odebrecht desse autoritarismo (do governo angolano). A Odebrecht actua junto com o governo angolano em uma série de empreendimentos e também nas suas ligações internas. Não podemos simplesmente dizer
que é apenas uma empresa que segue as regras”.

Ricardo Soares, autor de Magnífica e Miserável: Angola, afirma que “se a Odebrecht está preocupada com a sua reputação, só tem que clarificar a natureza dessas relações".

“A economia política da reconstrução gerou muitas oportunidades, muitos contratos, e esses contratos foram adquiridos por pessoas próximas do poder. É claro que a Odebrecht, sendo uma presença já muito antiga no país, e tendo uma relação particularmente privilegiada com o palácio presidencial, teve acesso a essas oportunidades a uma escala muito diferente de outros operadores em Angola.”

Talvez o mais cristalino resumo sobre como funciona a economia angolana venha de uma descrição da ex-embaixadora brasileira Ana Lucy Cabral Petersen. Ao detalhar as oportunidades para empresários brasileiros, escreveu em um despacho diplomático de 13 de março de 2011: “boas conexões e parceiros locais influentes são fundamentais para a concretização de investimentos em Angola. Sócios locais estratégicos, como a Sonangol, ex-ministros, generais e empresários próximos ao Presidente, facilitam a aprovação de projetos e dirimem entraves burocráticos. Bons contatos na Agência Nacional de Investimento Privado”.

“São empresas que vivem da relação com o Estado”. Para o historiador Pedro Campos, a principal vantagem da Odebrecht não é a qualidade da sua engenharia. Longe disso. “A marca da Odebrecht não é essa. É ser uma potência política. Ela sabe desenvolver relações com o aparelho do Estado e ser actuante - como é o caso com as Forças Armadas, Congresso, partido. A expertise está mais nisso” – acrescenta.

Para o investigador Mathias Alencastro, a multiplicação de projetos da Odebrecht em Angola cumpre um papel estratégico. “Ela cria a sensação de um movimento de reconstrução permanente, de que o país está mudando, que é a grande retórica que o MPLA criou para sufocar as contestações, legitimando seu poder autoritário. O que importa é que os projetos sejam anunciados, não que sejam bem-sucedidos”, analisa.

Pouco tempo depois da Independência, esteve em Angola Paulo Freire, o pedagogo brasileiro, considerado o pai de um sistema inovador de alfabetização. Tive o prazer de ter algumas reuniões com ele. Uma delas incluiu mais de uma vintena de pessoas, entre professores e simples admiradores de Freire.

A meio da reunião, um dos circunstantes fez um discurso que era muito repetido e que dizia respeito ao grande desejo de Angola vir a ser um “segundo Brasil”. A conversa foi rejeitada, censurada: o Brasil não podia ser modelo para Angola, até pela simples razão de na altura estar instalada naquele país uma ditadura de direita, comandada pelos generais.

Apesar de tal ter sido enfaticamente repudiado nos primeiros tempos de Independência, hoje parece, afinal, que o desejo colonial de fazer de Angola outro Brasil pode ter-se concretizado de uma maneira inesperada.