Africa Monitor

Acesso Livre

Negócios de Armamento Rússia-Moçambique Levantam Suspeitas

Negócios de Armamento Rússia-Moçambique Levantam Suspeitas

 

Um relatório do South African Institute of International Affairs (SAIIA) admite a existência de transacções clandestinas de armas entre a Rússia e Moçambique, num contexto de crescente ascendente russo em questões de Segurança e Defesa no país lusófono.

Intitulado "O ressurgimento da Rússia em África: Zimbabwe e Moçambique" e assinado por Dzinvka Kachur, investigador na Universidade de Stellenbosch, da África do Sul, o documento fundamenta a hipótese na contradição entre dados do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que indicam apenas duas transacções militares entre os dois países de 1970 a 2019 - uma em 1999, no valor de 2 milhões de dólares, e outra em 2017, de 7 milhões de dólares –, e relatos oficiais e da imprensa.

O autor considera que um exemplo ilustrativo de que material militar pode estar a ser transaccionado sem registo é o acordo de cooperação em defesa assinado entre Moscovo e Maputo em 2017. No âmbito do acordo, até sete navios russos passaram a poder atracar em portos moçambicanos, podem usar comunicações rádio, militares russos estão isentos de visto de entrada no país, os navios russos podem apreender pequenas embarcações que coloquem em risco as suas unidades navais mesmo em águas de Moçambique ou conduzir acções militares nessas águas e a Rússia pode enviar carga por via aérea sem necessidade de seguir procedimentos alfandegários.

A presença de mercenários russos em Moçambique, onde lutaram ao lado de tropas governamentais contra fundamentalistas islâmicos, designadamente através do Grupo Wagner na província de Cabo Delgado, conforme já demos nota no Africa Monitor, pode bem ser outra forma de introduzir material militar russo no país à margem de qualquer escrutínio e com a bênção oficial. E sem que Moscovo tenha que admitir o que quer que seja, quer quanto à sua presença no território, quer quanto à introdução de armas.

Segundo relatava em Julho último a Deutsche Welle, citando um documento confidencial do Ministério Federal das Relações Exteriores da Alemanha a que o jornal Bild terá acedido, a Rússia pretende instalar uma base militar em Moçambique e noutros Estados africanos, no quadro da sua estratégia recente para África.

A cooperação militar, porém, não é a única via pela qual a Rússia procura penetrar em Moçambique, como noutros países africanos, independentemente da legitimidade dos meios. O relatório da SAIIA lembra, por exemplo, que na sua reeleição como Presidente da República, Filipe Nyusi contou com apoio russo. Ao contrário do que era permitido em Moçambique, uma empresa “mandatada” por Moscovo, a Afric, terá divulgado sondagens durante a campanha eleitoral através de canais online acessíveis ao público e que já teriam interferido em eleições intercalares nos Estados Unidos. Os mesmos canais terão também partilhado “desinformação” desfavorável à RENAMO, acusando-a de ter acordos com a China prejudiciais aos interesses ambientais moçambicanos, e apresentando a Frelimo de Nyusi como a única organização capaz de combater o terrorismo que assolava (e assola) o país.

Favorecendo o candidato melhor colocado para vencer as eleições, a Rússia estaria a garantir contrapartidas posteriores da parte do Governo de Maputo se esse candidato vencesse, como aconteceu.

No plano económico e financeiro, o documento recorda financiamentos duvidosos de empresas russas a Moçambique, como o do Banco russo VTB à moçambicana Privinvest, que acabou aplicado num fim diferente ao que se destinava e valeu sanções do FMI e investigações de autoridades norte-americanas, britânicas e suíças. Ou a presença de familiares de Filipe Nyusi entre os accionistas da empresa russa Tazetta Resources, exportadora de minérios envolvida em projectos russo-moçambicanos na província da Zambézia.

Além dos casos citados, o relatório do SAIIA refere, por exemplo, a concessão da exploração e produção de hidrocarbonetos na Bacia de Angoche e no Delta do Zambeze a um consórcio que integra a petrolífera russa Rosneft (2018) e outros acordos entre a Rosneft, o Instituto Nacional de Petróleo (INP) e a Empresa Nacional de Hidrocarbonetos (ENH) para pesquisas geológicas em terra e no mar visando avaliar o seu potencial de desenvolvimento (2019).

Igualmente citado é o interesse manifestado pelo banco russo Gazprombank em financiar projectos de gás natural liquefeito (GNL) na Bacia do Rovuma (2019). Paralelamente, Moscovo tem prestado apoio humanitário nas áreas da segurança alimentar, cuidados de saúde e na sequência de catástrofes naturais (fornecendo tendas, cobertores, alimentos).
Mas esta cooperação, designadamente a económica, tem as suas limitações, como as debilidades da própria economia russa, a inadequação das armas russas para o Exército moçambicano, os elevados custos e contrapartidas dos negócios com a Rússia e os obstáculos criados pelas sanções à obtenção do financiamento necessário a projectos de maior escala.

Na base desta presença russa em Moçambique, como noutros Estados africanos, estarão fundamentalmente a queda acentuada dos preços do petróleo e as sanções impostas à Rússia, sobretudo nas áreas financeira congelamento de activos em Bancos estrangeiros -, energética, incluindo em projectos nos quais Moscovo tem participações, e de defesa, penalizando a exportação e/ou importação de armas, e a importantes personalidades russas na sequência da sua anexação da península ucraniana da Crimeia em 2014.

Além de se enquadrar na visão nacionalista da Rússia e de um mundo multipolar de Vladimir Putin, segundo Dzinvka Kachur, esta ofensiva africana de Moscovo incide essencialmente nas indústrias extractivas, nas transacções de armas e mesmo na cooperação política. De acordo com o investigador, para se aproximar de África, Putin recorre ao argumento das relações históricas da ex-União Soviética com o continente e ao papel desempenhado por Moscovo na luta dos povos africanos contra o colonialismo ocidental. Desta forma, Putin apela a uma certa nostalgia política para criticar a presença do Ocidente em África, acusando-o de explorar o continente sob o pretexto de querer apoiar a implementação da democracia.

Mas o Presidente russo não se ficou pela retórica. Em Outubro de 2019, acolheu em Sochi a primeira Cimeira e Fórum Económico Rússia-África, sob o mote «Pela Paz, Segurança e Desenvolvimento». Um evento ao mais alto nível (43 Chefes de Estado e 11 altos-representantes) e até então inédito nas relações entre Moscovo e África. (JA)

 

Nota: O autor não segue as regras do novo acordo ortográfico