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Petróleo e Mediterrâneo no centro da disputa entre Putin e Erdogan pela Líbia

Petróleo e Mediterrâneo no centro da disputa entre Putin e Erdogan pela Líbia

A presença turca e russa no conflito líbio intensificou iniciativas diplomáticas, mas sem êxito


Ténues sinais de aproximação entre Rússia e Turquia não garantem a paz na Líbia. Uma paz que a Europa e as Nações Unidas não conseguiram alcançar. E que o impasse no terreno continua a dificultar, mantendo incerto o futuro do país.

Se for cumprido, o recente acordo de cessar-fogo entre a Turquia e a Rússia na província síria de Idlib, onde os dois países apoiam facções inimigas, pode indiciar uma aproximação entre Ancara e Moscovo no conflito líbio, onde também patrocinam partes opostas. Na Líbia, a Turquia apoia o Governo de Acordo Nacional (GNA, ou Government of National Agreement), sediado em Tripoli, capital do país, sob a chefia de Fayez al-Sarraj, e que é internacionalmente reconhecido, designadamente pelas Nações Unidas e União Europeia (UE). A Rússia apoia o Governo dissidente do Exército Nacional Líbio (LNA, ou Lybian National Army) baseado em Tobruk, no leste do país, sob o comando do marechal Khalifa Haftar, apadrinhado pelo Egipto, Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos, rivais regionais da Turquia, bem como pela França, segundo alguma imprensa, e que desde Abril de 2019 tem em curso uma ofensiva militar contra Tripoli.

Este optimismo é relativo. Além das dúvidas quanto ao grau de confiança entre turcos e russos gerado com o recente cessar-fogo na Síria, ambos conservam braços armados na Líbia. Por outro lado, dois episódios quase simultâneos deste anúncio indiciam a continuidade do conflito. No dia 2 de Março, o enviado especial das Nações Unidas ao conflito da Líbia, o libanês Ghassan Salame, resignava ao cargo alegando motivos de saúde, talvez frustrado pela suspensão da presença dos beligerantes nas conversações de paz Genebra no final de Fevereiro. Um dia antes, o Governo sírio, apoiado pela Rússia, que combate milícias apoiadas por Ancara, e representantes do marechal Haftar assinavam um acordo para abertura mútua de missões diplomáticas nos respectivos países e anunciavam esforços coordenados nas instâncias internacionais para combater o que designaram por agressão turca.


Diplomacia frustrada

Outro motivo que, por si só, faz temer um agravamento da guerra civil na Líbia, é o envolvimento turco no conflito e o risco de se estar perante uma guerra por procuração, como lhe chamou o Secretário-Geral das Nações Unidas, António Guterres, em entrevista à BBC em Fevereiro, alegando que tal era inaceitável. Um envolvimento acentuado desde o início deste ano, com o envio assumido de tropas turcas para apoiar as forças de Fayez al-Sarraj, em dificuldades no terreno. Em 21 de Dezembro, o Parlamento turco aprovou um acordo de cooperação militar firmado em Novembro entre Erdogan e Fayez al-Sarraj prevendo o envio de forças militares e de segurança. Posteriormente, o Presidente turco anunciou o pedido de ajuda do GNA e no dia 2 de Janeiro o Parlamento aprovava o envio de tropas. Antes disso, contudo, Ancara já fornecera material militar ao Governo de Tripoli, segundo alguma imprensa. Do lado oposto, além das forças de Haftar, segundo vários relatos, estarão a combater mercenários russos da organização paramilitar privada russa Wagner, o que permite a Moscovo negar a presença militar do país no conflito, e sudaneses.

A presença turca, bem como a russa, no conflito, intensificou as iniciativas diplomáticas de pacificação, mas com pouco êxito. Em 19 de Janeiro, em Berlim, sob a égide das Nações Unidas, Angela Merkl patrocinou uma conferência com a presença da China, França, Rússia, Reino Unido, Estados Unidos, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Itália, Congo, Turquia, Argélia, União Africana, União Europeia e Liga Árabe, no final da qual foi aprovado um roteiro para a paz e a conclusão de que o conflito exige uma solução política, endossando à Missão das Nações Unidas de Apoio à Líbia (UNSMIL, United Nations Support Mission in Libya) a implementação das medidas.

Um relatório do Peace and Security Council, um órgão da UA, embora lembre que a organização tem defendido vigorosamente a sua inclusão nos esforços para levar a paz à Líbia, que é um dos seus membros, não esquece os desafios que isso implica: a desconfiança de alguns Estados membros quanto à neutralidade da UA porque outros têm interesses próprios no resultado do conflito; falta de consenso quanto a uma posição comum sobre o conflito; ausência da UA na Líbia e dificuldade em convencer os beligerantes em aceitar o papel mediador da organização; e existência de várias entidades africanas com mandato para resolver a crise líbia, que potencia a fragmentação de esforços e a dificuldade em obter soluções.

O Middle East Monitor, órgão informativo não lucrativo vocacionado para a questão palestiniana, referia outra diligência: um périplo de um responsável dos serviços de informações egípcios por vários países árabes visando assinar acordos de segurança para contrariar a crescente influência de Erdogan na região. O mesmo órgão citou há dias um ministro do GNA, segundo o qual as tropas do seu Governo irão em breve passar à ofensiva para repelir as forças inimigas. No princípio de Março, Washington, via Departamento de Estado, manifestou apoio à UNSIMIL, reconheceu que o conflito só tem solução política e apelou a Haftar para suspender a ofensiva sobre Tripoli, embora sem se render ou retirar do terreno, acrescentando que ele terá um papel político na resolução do conflito. Um papel que alguns analistas questionam, atendendo ao registo de Haftar. Além da diversidade de tribos recrutadas a troco de promessas de vingança, cada qual com exigências próprias, o uso que fez da violência no leste do país, onde domina, não lhe confere um estatuto de estabilidade como governante.


Os interesses

Mas o que move turcos, russos e outros actores, alguns dos quais ignorados em análises simplistas, como os extremistas islâmicos e milícias autónomas, segundo analistas, neste conflito? Essencialmente, duas coisas. Por um lado, o acesso às reservas petrolíferas líbias, as maiores de África e as nonas à escala mundial (48 mil milhões de barris no final de 2018, segundo o Banco de Desenvolvimento Africano) e ao mercado de gás natural do Mediterrâneo Oriental. Por outro, o domínio geo-estratégico do Mediterrâneo Oriental, que se reflectirá nos planos económico, político e de segurança.

O petróleo interessa a todos. Aos russos, que gostariam de ver a sua petrolífera Rosneft controlar o recurso. Aos turcos, cujo controlo do petróleo líbio seria uma importante arma de arremesso económica e política contra rivais no Mediterrâneo Oriental, onde novos desenvolvimentos os podem prejudicar. Em 2 de Janeiro, Grécia, Chipre e Israel assinaram um acordo para construir um oleoduto submarino de quase 2 mil Km capaz de transportar gás natural até à Europa (projecto EastMed). O acordo colide com outro, assinado entre Ancara e Tripoli, que prevê uma Zona Económica Exclusiva contínua entre a Turquia e a Líbia, bem como a concessão de direitos de exploração no Mediterrâneo disputados entre a Grécia, a Turquia e Chipre.

Estrategicamente, a Líbia é igualmente relevante para quem ambiciona dominar o Mediterrâneo Oriental. Com tudo o que isso implica, por exemplo, no controlo dos fluxos migratórios marítimos do Médio Oriente e África, incluindo a Líbia, para a Europa, que tem tido a Grécia, a Turquia e a Itália como principais destinos, onde se traduzem em pressão social e política sobre os respectivos Governos.

O futuro destes interesses depende em boa parte da evolução da relação russo-turca na Síria e, mais recentemente, do conflito comercial entre a Rússia e a Arábia Saudita (dois apoiantes do mesmo beligerante na Líbia) relacionado com a queda drástica do preço do petróleo  - que pode modificar a abordagem destes dois países à guerra civil líbia.

JA

Nota: O autor não escreve segundo as regras do novo acordo ortográfico